Bati a
porta da cabana, e ela quase saiu dos gonzos. Involuntariamente, pensei no
trabalho que daria reparar aqueles gonzos, tão difíceis de arranjar naquelas
latitudes, mas não, foda-se!, tinha de me concentrar. Quando fico nervoso
disperso e não penso coisa com coisa, porém, naquele momento, não podia ser,
precisava de todo eu. Expirei fundo, e dei um biqueiro na mesa que a virei: a
mesa não tinha dado trabalho nenhum a fazer. Peneirando todos os pensamentos /
porcaria que me assaltavam a ideia aos berros, a atropelar-se para conseguir a
mais mísera atenção do meu cérebro que já os / a topou a léguas e sabe só
quererem aparecer, destacar-se e ter quinze, efémeros, segundos de fama na
minha vida, pelo que, com uma precisão cirúrgica, recortei o meu problema da
salgalhada: a pedra que eu lançara, pouco antes acertara na cabeça de algo ou
alguém, que não estava sozinho. Parecera a cabeça de um urso, se não era um
urso e era gente, pior, com mais gente, pior ainda, se armada, eu podia estar
bem fodido na possibilidade de me terem seguido. Se fossem ursos e me tivessem
seguido, não estava em melhores lençóis, concluí. Não distinguir a cabeça dum
urso da cabeça duma pessoa era, provavelmente, dos episódios mais anedóticos e
trágicos que me acontecera nos últimos tempos. A minha mulher desfazia-se a rir
de mim, como sem ligar um corno à minha legítima e apavorada preocupação. Mas a
minha mulher tinha morrido, comida por um urso. Será que a minha confusão, veio
na sequência de algum tipo de trauma? Impossível, disse eu em voz alta, a
afastar o mau olhado com o vapor de água que se cuspiu da minha boca. Caminhava
em passo apressado, dum lado para o outro, agarrado à lança, como a uma
bengala. Era impossível, continuei a dizer, desde logo, porque o último
episódio do género deste, de uma confusão minha e consequências incalculadas,
acontecera há já alguns meses quando, depois das necessidades, eu ter limpo o
rabo a um molhe de urtigas, em pleno dia. Nem sequer percebi que estava rodeado
de urtigas. Dessa vez não viera mal nenhum ao mundo, só ao meu rabo. Agora o
caso era outro. Naquele sítio inóspito existia toda a sorte de atravessados dos
cornos, como dizia o meu velhote. O que o tornava suportável era ser tão, mas
tão inóspito que raramente algum de nós se deparava com um outro homem ou
mulher, ou seja, com atravessados. Os ursos eram mais numerosos, mas morriam
com uma pedrada certeira na cabeça. Pessoas, já dependia. Parei, mal me pareceu
ouvir algo fora da cabana. Um roçagar na folhagem. Uma pegada na neve. Um sinal
murmurado para dar início à invasão, foi algo desse género que eu ouvi. Um
cartucho metálico entrou dentro dum metálico cano, duma metálica espingarda.
Espingarda? “Estou fodido.”
quinta-feira, 10 de outubro de 2013
terça-feira, 10 de setembro de 2013
O Datado
Poucos se intrometiam com o datado. O datado era assim
conhecido pelas pessoas da vila, da mesma forma que elas haviam conhecido os
pais dele, e os pais desses, até agora só o conhecerem a ele, o último datado.
Um único ser humano (pelo menos não conheciam outros) que cismava em comer,
falar, escrever e em fazer um sem número de outras actividades elementares, à própria maneira, mais correctamente, própria de, sabia-se lá, há quantas
gerações antes. Por isso lhe chamavam o datado, embora tivessem alguma
pena dele, como daqueles que o antecederam, por se privar(em) das conquistas da
modernidade, só por ser(em) teimoso(s) ou orgulhoso(s) demais para querer(em) saber
com quantas engrenagens o mundo novo se movia. O datado metia-lhes pena, não o
entendiam. Parecia-lhes um profundo idiota. Mas poucos se intrometiam com ele,
travavam conversa com ele ou tinham interesse em travar, ninguém queria saber o
porquê de ele ainda ser irredutível nas suas opções. A justificação oficial era
de que não se demove um idiota, convicto no seu erro depois de lhe ser explicado
e demonstrado que está em erro; na verdade, ninguém queria ter de
descobrir que o datado não era idiota nenhum, que tinha uma razão para fazer o
que fazia, razão que sempre existira, e o problema era da vila, do país e
de todos quantos nunca lhe prestaram atenção. O argumentário da justificação oficial era, de longe, mais bem construído quase irrefutável, pelo que adoptavam sem mais, evitando debruçarem-se sobre o assunto, excepto em noites de maior bebedeira. A mais e mais eles nunca seriam como ele, nem ele como eles, e como tal, tudo bem.
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