quinta-feira, 10 de outubro de 2013

MANHUNT

Bati a porta da cabana, e ela quase saiu dos gonzos. Involuntariamente, pensei no trabalho que daria reparar aqueles gonzos, tão difíceis de arranjar naquelas latitudes, mas não, foda-se!, tinha de me concentrar. Quando fico nervoso disperso e não penso coisa com coisa, porém, naquele momento, não podia ser, precisava de todo eu. Expirei fundo, e dei um biqueiro na mesa que a virei: a mesa não tinha dado trabalho nenhum a fazer. Peneirando todos os pensamentos / porcaria que me assaltavam a ideia aos berros, a atropelar-se para conseguir a mais mísera atenção do meu cérebro que já os / a topou a léguas e sabe só quererem aparecer, destacar-se e ter quinze, efémeros, segundos de fama na minha vida, pelo que, com uma precisão cirúrgica, recortei o meu problema da salgalhada: a pedra que eu lançara, pouco antes acertara na cabeça de algo ou alguém, que não estava sozinho. Parecera a cabeça de um urso, se não era um urso e era gente, pior, com mais gente, pior ainda, se armada, eu podia estar bem fodido na possibilidade de me terem seguido. Se fossem ursos e me tivessem seguido, não estava em melhores lençóis, concluí. Não distinguir a cabeça dum urso da cabeça duma pessoa era, provavelmente, dos episódios mais anedóticos e trágicos que me acontecera nos últimos tempos. A minha mulher desfazia-se a rir de mim, como sem ligar um corno à minha legítima e apavorada preocupação. Mas a minha mulher tinha morrido, comida por um urso. Será que a minha confusão, veio na sequência de algum tipo de trauma? Impossível, disse eu em voz alta, a afastar o mau olhado com o vapor de água que se cuspiu da minha boca. Caminhava em passo apressado, dum lado para o outro, agarrado à lança, como a uma bengala. Era impossível, continuei a dizer, desde logo, porque o último episódio do género deste, de uma confusão minha e consequências incalculadas, acontecera há já alguns meses quando, depois das necessidades, eu ter limpo o rabo a um molhe de urtigas, em pleno dia. Nem sequer percebi que estava rodeado de urtigas. Dessa vez não viera mal nenhum ao mundo, só ao meu rabo. Agora o caso era outro. Naquele sítio inóspito existia toda a sorte de atravessados dos cornos, como dizia o meu velhote. O que o tornava suportável era ser tão, mas tão inóspito que raramente algum de nós se deparava com um outro homem ou mulher, ou seja, com atravessados. Os ursos eram mais numerosos, mas morriam com uma pedrada certeira na cabeça. Pessoas, já dependia. Parei, mal me pareceu ouvir algo fora da cabana. Um roçagar na folhagem. Uma pegada na neve. Um sinal murmurado para dar início à invasão, foi algo desse género que eu ouvi. Um cartucho metálico entrou dentro dum metálico cano, duma metálica espingarda. Espingarda? “Estou fodido.”

terça-feira, 10 de setembro de 2013

O Datado

Poucos se intrometiam com o datado. O datado era assim conhecido pelas pessoas da vila, da mesma forma que elas haviam conhecido os pais dele, e os pais desses, até agora só o conhecerem a ele, o último datado. Um único ser humano (pelo menos não conheciam outros) que cismava em comer, falar, escrever e em fazer um sem número de outras actividades elementares, à própria maneira, mais correctamente, própria de, sabia-se lá, há quantas gerações antes. Por isso lhe chamavam o datado, embora tivessem alguma pena dele, como daqueles que o antecederam, por se privar(em) das conquistas da modernidade, só por ser(em) teimoso(s) ou orgulhoso(s) demais para querer(em) saber com quantas engrenagens o mundo novo se movia. O datado metia-lhes pena, não o entendiam. Parecia-lhes um profundo idiota. Mas poucos se intrometiam com ele, travavam conversa com ele ou tinham interesse em travar, ninguém queria saber o porquê de ele ainda ser irredutível nas suas opções. A justificação oficial era de que não se demove um idiota, convicto no seu erro depois de lhe ser explicado e demonstrado que está em erro; na verdade, ninguém queria ter de descobrir que o datado não era idiota nenhum, que tinha uma razão para fazer o que fazia, razão que sempre existira, e o problema era da vila, do país e de todos quantos nunca lhe prestaram atenção. O argumentário da justificação oficial era, de longe, mais bem construído quase irrefutável, pelo que adoptavam sem mais, evitando debruçarem-se sobre o assunto, excepto em noites de maior bebedeira. A mais e mais eles nunca seriam como ele, nem ele como eles, e como tal, tudo bem.