quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Senegal

Abriu o arquivo, procurou o ficheiro. Atirando pelo ar as pastas que não lhe interessavam, ainda demorou vinte minutos a encontrar o que queria.

Sentou-se no meio da papelada irrelevante no chão, focou-se na tarefa que tinha em mãos. Antes de pousar a folha na mesa de café, arrastou os búzios que estavam em cima dela para o chão. Leu o nome na folha, fechou os olhos, respirou fundo. Se esvaziar a mente era difícil, faze-lo quando podia estar tão perto do fim era uma tarefa tremenda.

Com esforço, o raio de alcance dos seus sentidos foi expandindo. Encontrou o "cliente" mais depressa que o ficheiro. Os sentidos dele passaram a ser os seus. Via o que ele via, ouvia o que ele ouvia.

À sua frente, à frente do homem cujos olhos ele estava a usar, estava Cheikhou Papa Niasse. O sorriso de Cheikhou Papa Niasse, na cara de Cheikhou Papa Niasse, num corpo que não parecia de Cheikhou Papa Niasse. Sempre o tinha visto fardado. Guerrilheiro rebelde, no pico da forma física. Agora via um homem ligeiramente acima do peso, vestido com fato e gravata.

O seu "cliente" apertou a mão de Niasse e este abriu o braço, indicando-lhe que entrasse no gabinete. Os dois homens trocaram palavras amigáveis e fumo de charuto. As vezes, quando povoava o corpo de alguém, era difícil manter-se focado e deixava-se levar pelas conversas, pelos gestos, espectador na primeira pessoa. Desta vez, teve de se forçar a concentrar nos detalhes para se acalmar.

Viu uma faca romba para abrir envelopes em cima da mesa. Não servia. Fez um pouco de força, levando a cabeça do seu hospedeiro a virar-se ligeiramente para a esquerda, o mínimo possível para que este não reparasse que algo de estranho se estava a passar. Nem um segundo depois, o "cliente" rodou o pescoço para o lado oposto com desconforto, e massajou-o, mas nunca parou de conversar. Perfeito. A fracção de segundo em que olhou para a esquerda foi suficiente para encontrar o que procurava: uma espada pendurada na parede, escolha decorativa óbvia para um ex-rebelde MDFC. Quem sabe, a mesma espada que Niasse tinha usado para matar o Padre Augustin Diamacoune Senghor, escalando o conflito armado do seu país natal.

Quando Niasse se levantou e virou as costas, procurando qualquer coisa na prateleira, tomou todo o controlo do corpo do seu hospedeiro. Correu para a parede, agarrou a espada, puxou. Niasse foi apanhado de surpresa, mas reagiu com bastante celeridade, dadas as circunstâncias. Correu para o seu (agora) inimigo e agarrou os braços deste que já desciam com a espada em punho. Apesar de estar fora de forma, o ex-rebelde foi mais forte e a luta não durou muito. Ainda sem perceber bem o que se estava a passar, mas percebendo perfeitamente que tinha a vida em jogo, Niasse rapidamente subjugou o seu oponente, puxou de um revólver que trazia oculto em alguma parte do fato e disparou.

Putain! - não havia nada a fazer agora. Tinha falhado. De certeza que o seu alvo iria fugir do país em estado de alerta, nunca mais lhe voltaria a pôr as mãos em cima.

Deixou-se ficar, à espera da morte inevitável do seu "cliente" baleado. Ainda conseguiu ver Niasse a abrir uma frincha da porta do escritório e a espreitar, tentando perceber se alguém tinha ouvido o disparo.

Tanto trabalho, tantos anos a fazer-se passar por curandeiro. Incontáveis rituais de possessão...

Uma empregada de limpeza empurrava o carrinho pelo corredor. Quando viu o homem a abrir a porta de repente, assustou-se e virou o olhar para o chão, envergonhada.

Aquela cara não lhe era estranha. AQUELA CARA NÃO LHE ERA ESTRANHA! Deixou o estado de transe em que o seu verdadeiro corpo se encontrava. Acordou no meio da papelada, dos arquivos que julgou não voltar a precisar. Procurou no chão, sabia que estava à procura de uma pessoa da mesma área de residência. Maria do Carmo, quase chorou quando leu o nome da ficha com a fotografia correcta.

Nunca na vida entrou em transe tão rapidamente. Segundos depois, acordava no meio de um corredor, esfregona em punho. Não havia tempo a perder. Perdeu os chinelos no caminho de volta ao escritório de Niasse e viu o próprio à porta, fechando-a à chave. Correu, atirou-se contra o homem sem a mínima auto-preservação e com o peso do corpo da empregada, atirou-o pelas escadas do prédio.

Niasse era um osso duro de roer, mas ficou inconsciente depois do encontro de cabeça com o segundo andar. A empregada de limpeza estava amachucada mas não estava imobilizada. Abstraiu-se da dor, procurou a arma no bolso do homem, disparou. Verificou os sinais vitais e quando não encontrou nenhuns, saiu do transe.

Depois de tantos anos a sentir-se no corpo de outras pessoas, desta vez não se sentia ele próprio no seu corpo. Nem parecia verdade. Tinha cumprido a missão de espionagem. Podia voltar para casa. Podia rever a sua família.

Chorou, riu, voltou a chorar. Enxugou as lágrimas e permitiu-se alguma vaidade.
"Com o Professor Bambo, ninguém fode!"

domingo, 9 de fevereiro de 2014

antes de o tempo os mudar

de madrugada, sempre arrastava os pés porta fora,
calçada quente abaixo.
eu sabia-a desde que sou gente
escondida entre as saias pretas e os xailes
feios de circunstância
a chorar
funeral sim funeral não
e a lamentar aos lenços fungosos que
“o ‘mai mal era dos que partiam”
que para esses não havia remédio.
lavava os mesmos farrapos na represa há anos
estrangulando as pedras com um esfregão verde
resmungando entre dentes contra
presidentes de junta engravatados
que comparava aos suplentes da bola
- sentados e a não fazer um caralho.
tinha um campo,
terreno de semeadura
coisa pequena mais dois ou três barracos
um galinheiro com quatro ou cinco galinhas.
volta e meia podava aqui e ali
mas as poucas árvores que eu via
não davam filho e estavam condenadas
aos enxertos de quem não sabe o que é fruto
tão mirradas e tão pálidas como
as espigas em ano mau
entregues à podridão da semente
e alheias ao chegar novo de cada abril.
e se eu disser que não tinha eira
não tinha filhos
nem tampouco sabia o que era ter homem
e que o diabo carregasse
as que os tinham às mãos cheias,
não minto.
e todo o ano era esperar
esperar,
esperar um maio seguinte
em que pudesse dar o nome para a excursão
porque raios partam se não tinham mesmo
aparecido os três pastores em frente à virgem
tocados, palavra de honra, pela promessa
de que vinha aí coisa ruim
se não bradássemos aos céus
as cinquenta ave marias e salve rainhas a galope.
e era sempre a primeira a chegar ao adro da igreja
- pataniscas e azeitonas e broa de milho e o garrafão
de maduro prontos e impacientes
para os quilómetros de peregrinação
sentada
a ouvir o terço
rosário de pérolas amarrado à mão esquerda
a passar as contas à pressa, como quem não sabe
se faltam oito ou oitenta
até à última área de serviço.