domingo, 9 de fevereiro de 2014

antes de o tempo os mudar

de madrugada, sempre arrastava os pés porta fora,
calçada quente abaixo.
eu sabia-a desde que sou gente
escondida entre as saias pretas e os xailes
feios de circunstância
a chorar
funeral sim funeral não
e a lamentar aos lenços fungosos que
“o ‘mai mal era dos que partiam”
que para esses não havia remédio.
lavava os mesmos farrapos na represa há anos
estrangulando as pedras com um esfregão verde
resmungando entre dentes contra
presidentes de junta engravatados
que comparava aos suplentes da bola
- sentados e a não fazer um caralho.
tinha um campo,
terreno de semeadura
coisa pequena mais dois ou três barracos
um galinheiro com quatro ou cinco galinhas.
volta e meia podava aqui e ali
mas as poucas árvores que eu via
não davam filho e estavam condenadas
aos enxertos de quem não sabe o que é fruto
tão mirradas e tão pálidas como
as espigas em ano mau
entregues à podridão da semente
e alheias ao chegar novo de cada abril.
e se eu disser que não tinha eira
não tinha filhos
nem tampouco sabia o que era ter homem
e que o diabo carregasse
as que os tinham às mãos cheias,
não minto.
e todo o ano era esperar
esperar,
esperar um maio seguinte
em que pudesse dar o nome para a excursão
porque raios partam se não tinham mesmo
aparecido os três pastores em frente à virgem
tocados, palavra de honra, pela promessa
de que vinha aí coisa ruim
se não bradássemos aos céus
as cinquenta ave marias e salve rainhas a galope.
e era sempre a primeira a chegar ao adro da igreja
- pataniscas e azeitonas e broa de milho e o garrafão
de maduro prontos e impacientes
para os quilómetros de peregrinação
sentada
a ouvir o terço
rosário de pérolas amarrado à mão esquerda
a passar as contas à pressa, como quem não sabe
se faltam oito ou oitenta
até à última área de serviço.

Sem comentários:

Enviar um comentário