Abriu o arquivo, procurou o ficheiro. Atirando pelo ar as pastas que não lhe interessavam, ainda demorou vinte minutos a encontrar o que queria.
Sentou-se no meio da papelada irrelevante no chão, focou-se na tarefa que tinha em mãos. Antes de pousar a folha na mesa de café, arrastou os búzios que estavam em cima dela para o chão. Leu o nome na folha, fechou os olhos, respirou fundo. Se esvaziar a mente era difícil, faze-lo quando podia estar tão perto do fim era uma tarefa tremenda.
Com esforço, o raio de alcance dos seus sentidos foi expandindo. Encontrou o "cliente" mais depressa que o ficheiro. Os sentidos dele passaram a ser os seus. Via o que ele via, ouvia o que ele ouvia.
À sua frente, à frente do homem cujos olhos ele estava a usar, estava Cheikhou Papa Niasse. O sorriso de Cheikhou Papa Niasse, na cara de Cheikhou Papa Niasse, num corpo que não parecia de Cheikhou Papa Niasse. Sempre o tinha visto fardado. Guerrilheiro rebelde, no pico da forma física. Agora via um homem ligeiramente acima do peso, vestido com fato e gravata.
O seu "cliente" apertou a mão de Niasse e este abriu o braço, indicando-lhe que entrasse no gabinete. Os dois homens trocaram palavras amigáveis e fumo de charuto. As vezes, quando povoava o corpo de alguém, era difícil manter-se focado e deixava-se levar pelas conversas, pelos gestos, espectador na primeira pessoa. Desta vez, teve de se forçar a concentrar nos detalhes para se acalmar.
Viu uma faca romba para abrir envelopes em cima da mesa. Não servia. Fez um pouco de força, levando a cabeça do seu hospedeiro a virar-se ligeiramente para a esquerda, o mínimo possível para que este não reparasse que algo de estranho se estava a passar. Nem um segundo depois, o "cliente" rodou o pescoço para o lado oposto com desconforto, e massajou-o, mas nunca parou de conversar. Perfeito. A fracção de segundo em que olhou para a esquerda foi suficiente para encontrar o que procurava: uma espada pendurada na parede, escolha decorativa óbvia para um ex-rebelde MDFC. Quem sabe, a mesma espada que Niasse tinha usado para matar o Padre Augustin Diamacoune Senghor, escalando o conflito armado do seu país natal.
Quando Niasse se levantou e virou as costas, procurando qualquer coisa na prateleira, tomou todo o controlo do corpo do seu hospedeiro. Correu para a parede, agarrou a espada, puxou. Niasse foi apanhado de surpresa, mas reagiu com bastante celeridade, dadas as circunstâncias. Correu para o seu (agora) inimigo e agarrou os braços deste que já desciam com a espada em punho. Apesar de estar fora de forma, o ex-rebelde foi mais forte e a luta não durou muito. Ainda sem perceber bem o que se estava a passar, mas percebendo perfeitamente que tinha a vida em jogo, Niasse rapidamente subjugou o seu oponente, puxou de um revólver que trazia oculto em alguma parte do fato e disparou.
Putain! - não havia nada a fazer agora. Tinha falhado. De certeza que o seu alvo iria fugir do país em estado de alerta, nunca mais lhe voltaria a pôr as mãos em cima.
Deixou-se ficar, à espera da morte inevitável do seu "cliente" baleado. Ainda conseguiu ver Niasse a abrir uma frincha da porta do escritório e a espreitar, tentando perceber se alguém tinha ouvido o disparo.
Tanto trabalho, tantos anos a fazer-se passar por curandeiro. Incontáveis rituais de possessão...
Uma empregada de limpeza empurrava o carrinho pelo corredor. Quando viu o homem a abrir a porta de repente, assustou-se e virou o olhar para o chão, envergonhada.
Aquela cara não lhe era estranha. AQUELA CARA NÃO LHE ERA ESTRANHA! Deixou o estado de transe em que o seu verdadeiro corpo se encontrava. Acordou no meio da papelada, dos arquivos que julgou não voltar a precisar. Procurou no chão, sabia que estava à procura de uma pessoa da mesma área de residência. Maria do Carmo, quase chorou quando leu o nome da ficha com a fotografia correcta.
Nunca na vida entrou em transe tão rapidamente. Segundos depois, acordava no meio de um corredor, esfregona em punho. Não havia tempo a perder. Perdeu os chinelos no caminho de volta ao escritório de Niasse e viu o próprio à porta, fechando-a à chave. Correu, atirou-se contra o homem sem a mínima auto-preservação e com o peso do corpo da empregada, atirou-o pelas escadas do prédio.
Niasse era um osso duro de roer, mas ficou inconsciente depois do encontro de cabeça com o segundo andar. A empregada de limpeza estava amachucada mas não estava imobilizada. Abstraiu-se da dor, procurou a arma no bolso do homem, disparou. Verificou os sinais vitais e quando não encontrou nenhuns, saiu do transe.
Depois de tantos anos a sentir-se no corpo de outras pessoas, desta vez não se sentia ele próprio no seu corpo. Nem parecia verdade. Tinha cumprido a missão de espionagem. Podia voltar para casa. Podia rever a sua família.
Chorou, riu, voltou a chorar. Enxugou as lágrimas e permitiu-se alguma vaidade.
"Com o Professor Bambo, ninguém fode!"
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