quarta-feira, 11 de junho de 2014

Ad Men

A determinado momento do século XXI as grandes corporações atravessaram uma crise de imaginação. (Bem sabido que as crises são cíclicas, vão e vêm, e como a gripe não há vacina que as elimine de vez, apenas as afasta o tempo necessário para retornarem noutro disfarce.) Os mercados tinham-se uniformizado, globalmente globalizados, a informação era acessível à generalidade do público que interessava que comprasse, e este mantinha o poder financeiro para o fazer. Uma questão quase tão velha como o mundo revolvia por debaixo dos cabelos semi-grisalhos dos executivos: como vender mais do seu produto? Os mercados alimentavam-se, desde sempre, de competição, de guerra sem quartel entre oferta e procura. A procura estagnara, e estagnava a olhos vistos em resultados aceitáveis para todas as facções. A oferta acompanhava-a em insipidez.
Sem muitas delongas, esta preocupação foi passada para os departamentos e agências de publicidade das respectivas corporações. Mentiríamos se disséssemos que por serem profissionais pagos a peso de ouro para montar estratégias, estudar mercados, criar hypes, os publicitários desencantaram a forma alquímica que resolvia os problemas dos homens do dinheiro (e dos homens que produziam e dos que trabalhavam, e toda a linha de montagem de gente que alimentava as corporações). Na verdade, muitos estagiários passaram noites em branco fustigados com a doença, provocada pelo espirro dos seus clientes. Muitos criativos debruçaram-se, preocupadamente, sobre o assunto, inclusive quando saíam do trabalho e antes de gastar o imenso dinheiro que ganhavam, mas também sem encontrar uma solução.
Como a crise foi genérica, e todas as corporações a começaram a combater em segredo para não exporem a fraqueza que todas sabiam que todas tinham, o que aconteceu a seguir entrou mais depressa no imaginário mítico do que nas revistas científicas da especialidade. Isto porque quando se percebeu a eficácia de uma solução, as corporações atacaram o público como chacais esfomeados, e tornou-se muito difícil rastrear a autoria da estratégia, numa época em que a informação era bombardeada de todos os lados. Consta-se que a "guerra" começou quando o carro onde seguia o presidente do conselho de administração de uma corporação virou para a rua da sua sede (que era o quarteirão inteiro) e reparou que a placa da rua fora mudada: a rua da sede da sua corporação passar a ter o nome da principal marca rival da sua corporação. Em pânico, entrou na net e constatou que a rua da sede da corporação da marca rival também fora rebaptizada mas com o nome de outra das suas marcas. Ainda não tinha entrado no escritório quando já deu luz verde ao departamento publicitário para fuzilar os insolentes com uma campanha três vezes maior. Assim, dizia-se, começava um conflito de ideias à escala mundial, e uma nova era dourada da publicidade.
A estratégia em si, tinha barbas. Já há muito se baptizavam estádios de futebol, festivais de música, ou eventos de caridade com marcas comerciais. Mas patrocinar ruas era terreno virgem. Na verdade patrocinar o terreno público era tão ousado que ainda não cruzara a cabeça de ninguém. Até ao momento em que alguém o fez, e se iniciou a corrida ao armamento. Todas as pessoas nasciam, viviam, trabalhavam, conviviam e morriam em determinada morada, que mencionavam repetidamente desde que aprendiam a articular sons, até ao silêncio final. Poucas corporações se deixaram ultrapassar pelo sentido de oportunidade da concorrência, e em menos de um ano (de acordo com o imaginário mítico criado, única fonte histórica segura do que se passou naquele tempo) todas as ruas, bairros, circunscrições administrativas de toda a sorte, cidades, regiões e até países, estavam patrocinados por alguma grande marca, de uma forma ou de outra.
Apesar do choque inicial, e de algumas convulsões sociais, o paradigma acabou bem aceite. Afinal todos eram peões (e cúmplices) no consumo de massas, sobre o qual achavam ter pleno controlo, através do democrático acesso à informação dos produtos e à divulgação dos seus benefícios e defeitos. Pobres almas, não se deram conta da erosão da sua memória comum, substituída pelas denominações invasoras, impostas pelas corporações, das suas marcas e produtos.
Os publicitários assumiram, em pleno, o papel de novos garimpeiros, e não deram tréguas uns aos outros na ânsia de descobrir um novo mercado a necessitar de um "baptismo" para ser rentabilizado, ou de um patrocínio que ainda estivesse por atribuir. Impingiram marcas de segunda categoria a autarquias frágeis, e os produtos do magnata da terra ao respectivo bairro mais necessitado. Orgulhosos, os publicitários davam-se conta de reinventar a toponímia do mundo todo, criando quase um novo feudalismo, onde o nome do suserano era substituído pelo de uma marca de um produto. A "guerra" era uma realidade. Os publicitários trabalharam bem para a tornar a única realidade.
Os publicitários com mais visão anteviram, logo após o início dos "baptismos", que os mesmos se revelariam insuficientes dentro de pouco tempo. Afinal, a "guerra" nascera da estagnação de ideias, fora germinada em terreno árido uma estrutura empresarial agressiva em torno da ideia de conquistar território às agências das outras corporações. A máquina da guerra se não é alimentada, é engolida; se espremessem já toda a estratégia, a máquina desmoronaria. De modo que, ainda antes de estarem esgotadas todas as possibilidades toponímicas locais, regionais ou nacionais, já estavam a atacar um novo mercado: nomes próprios. Se as pessoas tinham de mencionar, repetidamente, o nome do sítio onde viviam, onde tinham vivido ou para onde gostavam de ir, muitas mais vezes tinham de repetir o próprio nome e os nomes umas das outras, o que conferia  ao patrocínio de nomes um potencial publicitário muito maior.
As corporações apressaram-se a comprar e a implementar a ideia, em simultâneo e de imediato. Para tal pressionaram diversos governos a alterarem a respectiva legislação de registo civil para ser regra, e não excepção, que um indivíduo pudesse escolher dar aos filhos o nome que bem entendesse (encontrando-se destacados na lista oficial de nomes sugeridos, o das marcas das corporações patrocinadoras), além de poder alterar o próprio nome quando assim pretendesse. Este novo passo na "guerra" teve uma aceitação mais titubeante, e não foi implementado com o sucesso inicial que se previa. Por alguma razão que os estudos dos publicitários não deslindavam, o público tendia a ser mais conservador na hora de escolher o nome dos seus rebentos e de mudar o seu. Mas os publicitários tinham demasiada fome de resultados para confiar ao tempo o sucesso da sua estratégia. Começaram por alterar os seus próprios nomes para o das marcas que representavam, e aconselharam os trabalhadores das corporações a fazer o mesmo. Nas entrevistas de trabalho, as corporações começaram a dar preferência à admissão de pessoal que tivesse no nome alguma marca que comercializavam e a recusar quem, ao invés, tivesse nome de uma marca adversária. Mas a estratégia não ficara por aí: sempre pragmáticos, os publicitários, alteraram algumas marcas de modo a assemelharem-se mais a certos nomes pessoais, e assim serem mais facilmente escolhidos. O marketing revelou-se certeiro e após alguns anos, as fichas de presenças dos infantários já se assemelhavam a verdadeiros catálogos de compras.
O último grande raide da época dourada dos publicitários ocorreu após perceberem que a ausência de um novo alvo para a "guerra", ou de uma estratégia totalmente nova, degeneraria, a breve trecho numa nova estagnação. Algo que alguns visionários já tinham imaginado, mas sem terem concebido uma solução à altura da que aconteceu com o patrocínio dos nomes. Debaixo da respiração pesada e esfomeada dos corporativos, os publicitários começaram a contar espingardas: já tinham "baptizado" locais, já tinham "baptizado" nomes, o que faltava? "Falta tudo o resto": os descamisados e ensonados criativos esfregaram os olhos na direcção do autor da resposta. Segundo se consta, ela foi dada por um desses estagiários que não via a cor dos lençóis há uma semana, com mais cafeína do que glóbulos vermelhos no sangue e mais fumo de cannabis do que ideias no cérebro, e com uma ingenuidade de génio dera aos patrões o ovo de Colombo: faltava patrocinar tudo o resto! Mesmo quando já não havia assim tanto por patrocinar? Claro que havia. Desde logo, o resto eram as coisas. Quaisquer coisas. O mundo estava repleto de coisas. Resolveu-se patrocinar a própria designação dos objectos; todos eles. Um garfo deixou de ser um garfo passou a ser uma marca. Um casaco deixou de se chamar casaco, passou a chamar-se uma marca de casaco, vendida por incontáveis marcas de casaco. Os nomes dos alimentos não escaparam. Muito menos os animais. Nomes científicos também não. Desde o mais insignificante objecto ao mais pujante corpo celeste passou a ser cobiçado para rótulo de uma determinada corporação.
A disputa pela palavra "publicidade" foi uma guerra dentro da "guerra", literalmente sanguinária e da qual não houve vencedores nem vencidos: apenas um múltiplo retalhamento, sem dó, da palavra em diversos sinónimos, um para cada corporação e agência com peso nos mercados. A diplomacia musculada, digna de qualquer cimeira entre impérios coloniais, presidiu também à discussão em torno da publicitação dos números. "Mas as crianças nas escolas precisam deles", disse alguém para gargalhada geral dos seus congéneres: uma vez mais, uma história do domínio do mítico sem base factual. A solução lá enganou a fome das corporações: os símbolos numéricos eram deixados à margem do conflito (por então), mas os números por extenso, escritos ou falados, estavam no mercado como qualquer outra coisa.
Quando todos os substantivos de todos os dicionário já estavam conquistados, os publicitários aproveitaram o andamento, e atacaram os adjectivos. Os pronomes foram chacinados sem dó. As preposições submetidas. Os verbos, respectivos tempos e conjugações, foram quem mais resistência ofereceu, e até ao último fôlego rechaçaram as implacáveis investidas dos publicitários. Mas a guerra já não era guerra: era só uma questão de tempo. Após o cerco feroz aos verbos, o seu reduto foi pilhado e conspurcado, e os pobres resistentes foram levados, em correntes, ao chicote das corporações que os cobiçavam desde o dia em que o primeiro objecto deixou de o ser. Os sinais de pontuação e acentuação, julgaram que passariam despercebidos enquanto mantivessem o seu silêncio, mas em vão. A regra de excepção para os símbolos numéricos acabou por prescrever. O apogeu foi alcançado. Depois da vitória da publicidade sobre as imagens, eis a vitória sobre as línguas. Comunicar e propagandear eram uma e só coisa. Não houve oportunidade para assinar nenhum armistício: a "guerra" venceu, permanecendo.
Corporações e publicitários viveram felizes enquanto os satisfez aquele estado de coisas que levaram décadas a construir. Manter  a máquina que se montara, era tarefa que consumia bastantes recursos e tempo a todos os intervenientes, e tão cedo não precisaram de pensar em mais nada. Mas a doença não fora erradicada. A crise estava à espreita. Bastava um executivo espirrar numa hora de particular tédio, para agitar as águas: o mercado voltara a estagnar, e o monopólio oligárquico já não era suficiente para ninguém. Aquando um jantar informal de negócios, desses em que executivos e publicitários, debatiam as suas dores de espírito entre vinhos caríssimos e comidas exóticas, alguém lançou o tiro: e fazerem com a música o que tinham feito com a língua?

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